“Os suplementos de literatura e pensamento já não existem mais. Um a um foram condenados e derrotados
pela cegueira e pela insensatez dos novos tempos”.
...
“E assim cada vez mais aceitamos as tentações da barbárie e a
“descultura”. Quase sem perceber perdemos tantos cadernos culturais e espaço
crítico que para a massa já não fazem falta. Nietzsche dizia que se você olha
muito tempo para o abismo, o abismo olha para você. Os editores ou os ditadores
do orçamento olham para o abismo cultural”.
E, para compor o cenário de devastação
cultural:
“... a declaração de Umberto Eco ao El País, “a Internet pode ter tomado o
lugar do mau jornalismo… Basta pensar no sucesso que faz qualquer página da web
que fale de complôs ou invente histórias absurdas: tem um acompanhamento
incrível, de internautas e de pessoas importantes que as levam a sério””.
"Sem
prosa, sem verso, sem saída
A carta de despedida de José
Castello no fechamento do caderno Prosa & Verso d’O
Globo do dia 12/09
explicava o que o jornal omitiu: “Os suplementos de literatura e pensamento já
não existem mais. Um a um foram
condenados e derrotados pela cegueira e pela insensatez dos novos tempos”. O Globo
não publicou a carta, saiu só no blog do Castello. Assim talvez os
leitores em papel não percebessem que o suplemento virou duas páginas
encartadas no Segundo Caderno, engessadas pelas
14 páginas do caderno Ela em quatro cores onde
aprendemos tudo sobre “Verão Al Mare”. Nos dois últimos sábados (19 e 26/9),
repeteco, duas páginas de boa cultura espremidas pelos anúncios ao pé.
O Aliás do Estadão (20 e 28/09) aderiu, virou só duas
folhas. Mutilado o Caderno 2, resiste. A Ilustrada da Folha, cada vez mais teen
ager, também.
Até quando?
O colunista Artur Xexéo, ausente há oito meses, foi resgatado pelo Globo, mas na primeira coluna depois da
sangria de 60 jornalistas só citou os sobreviventes.
Pegou mal. E assim cada
vez mais aceitamos as tentações da barbárie e a “descultura”. Quase sem
perceber perdemos tantos cadernos culturais e espaço crítico que para a massa
já não fazem falta. Nietzsche dizia que se você olha muito tempo para o abismo,
o abismo olha para você. Os editores ou os ditadores do orçamento olham para o
abismo cultural.
O panorama do pensamento é lúgubre neste momento em que as
maravilhosas produções do SESC a preços populares vão ter um corte de 30% (adeus
peças de Bob Wilson e produções francesas com Isabelle Huppert a R$ 10,00). Uma
“catástrofe” para o diretor do SESC de São Paulo, Danilo Miranda. Tudo fica
pior diante do meio milhão de zeros na redação do ENEM deste ano. Ou quando os
resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização revelam que seis entre dez
alunos de oito anos no Brasil não resolvem problemas simples de matemática, não
sabem ver as horas em relógios analógicos, e um em cada cinco não entende o que
lê. A prova incluiu no ano passado 2, 3 milhões de alunos das 49 mil escolas
públicas. A região do sul e do sudeste, que era um pouco melhor, vai piorar com
essa volúpia de cortes em tudo o que leva o nome de cultura. E mais ainda com a
crise que leva os alunos de escola particular a frequentar as públicas, antes
consideradas ensino de elite.
Cortar os pulsos
Só a Cinemateca de São Paulo, fundada pelo filho de Oswald de
Andrade, Rudá, perdeu 50% dos funcionários e o Ministério da Cultura congelou
os repasses feitos à Sociedade Amigos da Cinemateca, que geria a casa. A 39ª
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que iniciou muitos cinéfilos em
quatro décadas, perigou não acontecer este ano e abre dia 22 de outubro com 40%
a menos de patrocínios.
O Festival do Rio dia 1 de outubro vem com déficit de
100 filmes. A excelente temporada de Óperas do Teatro Municipal de São Paulo
terá cortes, pelo menos Cosi fan Tutte, de Mozart, já não
será exibida este ano e 2016 só apresentará Don Carlo de Verdi, La
Bohème de Puccini e Lady
Macbeth de
Shostakovich – outras três foram para o espaço.
Bianca Byington comenta que vê teatro ruim e dá vontade de cortar
os pulsos. Paulo José afirmou em O Globo, com pessimismo, que “o
cinema brasileiro é o pior cinema brasileiro do mundo”. O diretor da TV
Globo, Luis Fernando Carvalho, numa entrevista ao Estadão há dois anos, já via na televisão
brasileira sinais de esgotamento. Eureka, a Bienal do Livro do Rio vendeu 40% a
mais… por conta das blogueiras evangélicas ou as muito jovens como Kéfera
Buchmann( Muito
mais que cinco Minutos, 13 milhões de seguidores na Internet,
gritos e choros das teen agers na platéia do Riocentro.
Nada contra a juventude ou vender muito. Mas prefiro a declaração
de Umberto Eco ao El País, “a Internet pode ter
tomado o lugar do mau jornalismo… Basta pensar no sucessos que faz qualquer
página da web que fale de complôs ou invente histórias absurdas: tem um
acompanhamento incrível, de internautas e de pessoas importantes que as levam a
sério”
Para os adeptos virais da Internet pelo smartphone Ruy Castro
advertiu na sua coluna da Folha, tocando no ponto que mais
preocuparia as aficionadas: de tanto curvar a postura para digitar
freneticamente as mulheres [além de encolher o cérebro],
estão desenvolvendo queixo duplo…
O pensamento claro e lógico foi pro brejo, produzimos geração
espontânea de mentes consumistas. Estamos atolados de páginas de Economia nos
livros e jornais, de ensinamentos de empreendedorismo, de podridão na política,
tudo adornado por Comida, Paladar,
cadernosGourmet, e roupas estilosas do Ela.
O caderno d’ O Globo chega a ser autofágico. Quando fala de
TV então, só dá Globo.
E todo mundo mergulhado
numa crise monumental que nasceu na existencial. Um gênio apelou: em vez de
iniciar empresários deprimidos com linguagem economês resolveu apelar para
técnicas de teatro, e deu certo. “Elas agregam valor ao profissional”, diz o
criador da escola de cinema, teatro e TV para executivos, Emilio Fontana,
“Solucionam problemas até de tensão diante de situações difíceis” (Valor, 27/07/15).
No caderno Eu do jornal Valor,
bebido diariamente pelo empresariado, os sócios fundadores da Gávea
Investimento, como Armínio Fraga, mandaram sugestões para resistir à crise.
Técnicas de sobrevivência na selva aprendidas nos bancos do INSPE ou da FVG?
Nada. Assistir filmes comoVidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963),
ensina o investidor a ser resiliente. O Capital(Costa-Gravas, 2002),
leva a refletir sobre questões éticas. A Felicidade Não se Compra (Frank Capra, 1946) é um bom caminho
para cada um descobrir que existe fragilidade financeira.
Comunicação por grunhidos
A literatura salva. A ficção pode ser o melhor caminho para se
entender a realidade. “O que o escritor faz com sua literatura?”, explicou o
moçambicano Mia Couto esta sexta feira (25/9) numa das mesas da Paulicéia
Literária. “Num cenário de discussão global de narrativa do medo, que nunca foi
tão forte, tento oferecer uma viagem contra o medo”. O que ele busca? “O
encantamento poético… fui salvo ainda menino pela poesia de Fernando Pessoa”. A
seu lado, o escritor angolano José Eduardo Agualusa embarcou, “O Livro do
Desassossego” não sai da minha mesa, não da mesa de cabeceira, da mesa de
trabalho, mesmo, em cada pausa leio uma poesia para poder prosseguir”
A cultura é a Geni do Brasil. No sul maravilha, dá nervoso
comparar a Revista
do Domingo doGlobo ou a Serafina da Folha com o Suplemento
Literário de Minas Gerais, que no número de maio exibiu em 45
páginas artigos de Ivo Barroso sobre a tradução como ofício, de Marcelo Backes
“Onde Buscar os Livros Lá Fora e Na Alma Aqui Dentro?”, um poema de Leonardo
Fróes, Augusto de Campos sobre Maiakovski, tudo em papel grosso e capas em
cores, bancado pela Secretaria de Cultura ocupada por Angelo Oswaldo . Aqui,
temos a Piauí,
que pode não ser literária mas é leitura mais adulta que restou.
Saramago dizia que depois do twitter todo mundo iria se comunicar com
grunhidos. Convidamos os incultos a calar ou ler o livro de Pierre Bayar “Como
Falar de Livros Que Você Nunca Leu” ( “How To Talk About Books You Haven’t
Read”).
Para a posteridade vai restar, feito navalha no espírito, a carta
de José Castello (“Hora da Despedida”) que decretou: “Nosso mundo se define
pelo achatamento e pela degola. No lugar do diálogo, predominam o ódio e o
desejo de destruição. No lugar da tolerância, a intolerância e a rispidez,
quando não a agressão gratuita. É o mundo do Um em que todos dizem as mesmas
coisas, usando quase sempre as mesmas palavras. Um mundo em que a verdade, que
todos ostentam, de fato agoniza. Nesse universo, a literatura se impõe como um
reduto de resistência. A literatura é o lugar do diálogo, do múltiplo, da
diferença. Não é porque gosto de Clarice que devo odiar Rosa. Não é porque amo
Pessoa que devo desprezar Drummond. Ao contrário: na literatura (na arte) há
lugar para todos.
Uma pena que o Prosa [caderno Prosa
& Verso d’ O Globo] se acabe justamente em um
momento em que nos sentimos espremidos por vozes que repetem, sempre, os mesmos
ataques e as mesmas agressões. Nesse mundo de consensos nefastos e de clichês
que encobertam a arrogância, nesse mundo de doloroso silêncio que se apresenta
como gritaria, a literatura se torna um lugar cada vez mais precioso. Nela
ainda é possível divergir. Nela ainda é possível trocar ideias com lealdade e
dialogar com franqueza. Sabendo que o diálogo, em vez de sinal de fraqueza, é
prova de força.” Como escreveu Castello, lá se vai o Prosa com tudo o que ele significou de luta
e de aposta na criação.
***
Por Norma
Couri (jornalista)
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